O sal indigesto do Açu


Para um especialista em ecologia e, particularmente, em restinga, o Complexo Logístico Industrial Portuário do Açu é insustentável do ponto de vista ambiental. Seu gigantismo e sua natureza modificadora do meio não poderiam jamais ser autorizados pelos governos federal, estadual e municipal, em respeito à legislação específica. Como autorizar um empreendimento na maior restinga do Estado do Rio de Janeiro que a leva a ser algo que ela não é?
Em meus estudos, batizei esta restinga com o nome de Paraíba do Sul porque a contribuição do rio de mesmo nome foi fundamental para sua construção. Segundo explicam os geólogos, o jato d’água do Paraíba do Sul funcionou como um espigão retentor da areia em suspensão nas correntes marinhas, levando-a a se assentar no fundo do mar. O processo é semelhante ao que ocorreu em Barra do Furado, onde o espigão de pedra do lado de Quissamã retém areia em suspensão, levando-a a se acomodar no fundo do mar. Tendo preponderante origem marinha, claro que o ambiente da restinga é originalmente salgado, mas a água doce do subsistema Rio Paraíba do Sul e do subsistema Lagoa Feia, assim como a das chuvas, incumbiram-se de reduzir a salinidade ao longo de séculos. Também o Departamento Nacional de Obras e Saneamento construiu obras para a contenção da língua salina até onde não devia, como no Lagamar.
Assim, os terrenos arenosos da restinga puderam abrigar vegetação nativa que apresenta desde aspecto herbáceo até fisionomia arbórea, passando por uma variedade de feições vegetais. A fauna nativa também formou nichos ecológicos na ecodiversidade da restinga. Os indígenas viveram dela retirando o que a natureza lhes proporcionava, de forma ecologicamente sustentável. Bem mais tarde, a agropecuária entrou neste território arenoso. Houve remoção da vegetação nativa e da fauna a ela associada? Houve danos às lagoas? Sim, houve. Contudo, ambiente nativo e agropecuária chegaram a um equilíbrio, não a uma situação de harmonia porque não existe harmonia nem na natureza nem na sociedade.
O estado de equilíbrio perdurou até a chegada do megaempreendimento da EBX. No início, pretendia-se apenas um porto na forma de ilha e um mineroduto. Logo em seguida, vieram duas termelétricas, um estaleiro e um distrito industrial. A areia retirada de dois canais no fundo do mar seria depositada no próprio leito marinho, mas agora está sendo usada para construir o aterro sobre o qual vai se erguer o distrito industrial. Impossível que esta areia não venha ensopada de água salgada. Impossível retirar o sal lavando a areia com água doce, pois de onde a água viria? Do Rio Paraíba do Sul? Do Aquífero Emboré? Será que valas conduzindo a água salgada para o mar funcionariam?
Para o grosso do sal, sim. Entretanto, não seria possível evitar de todo a chegada do sal aos ecossistemas aquáticos próximos, como o Canal do Quitingute e a Lagoa de Iquipari. As cabeceiras desta última estão sendo aterradas com areia proveniente do mar. Além do mais, como impedir que água salgada atinja o lençol freático, tão próximo à superfície na restinga? A questão parece clara: para o complexo do Açu, o sal não é problema, pois as atividades que vão funcionar nele não são afetadas pela salinidade, a não ser a corrosão que ela provoca nos materiais.
Portanto, o aumento da salinidade no Canal do Quitingute e nas lavouras vem a ser externalidade para o grande empreendimento. A explicação dada pelo INEA e pelo representante do complexo, segundo a qual o aumento de salinidade em certos ambientes da restinga, decorre de um acidente de transbordamento numa das valas de escoamento de água salgada para o mar, não é convincente. A princípio, o porta-voz da EBX, sempre do alto de sua arrogância, negou qualquer episódio de salinização. Depois, o INEA e ele reconheceram o transbordamento da vala. Nenhum morador do Açu testemunhou este transbordamento.
Avento a grande probabilidade de um processo de salinização lento e progressivo causado pelo aterro e pela abertura, no continente, do largo e profundo canal do estaleiro da OSX. Se confirmada esta hipótese, a salinização só cessará com o término das obras. Então, o processo de dessalinização será revertido em longo prazo, se é que a empresa está interessada em tal reversão. Creio que a EBX conta mais em expulsar os pequenos produtores rurais de suas terras do que em dessalinizar o ambiente.
Enfim, o complexo está destruindo rapidamente o que a natureza levou milênios para construir. Tudo em nome de um desenvolvimento ecologicamente insustentável. Com um décimo dos recursos públicos que o empreendimento recebe, seria possível promover um ecodesenvolvimento com pescadores e agricultores. Haveria, assim, a produção de alimentos para o mercado interno. Porém, a política governamental é ajudar a substituição violenta de um ambiente nativo por um ambiente antrópico, de uma população tradicional por uma população heterogênea e exógena.
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Arthur Soffiati é Doutor em História Ambiental 

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